Wesclei
Ribeiro Cunha
Muitos são os rótulos vinculados
à escritora Clarice Lispector, de escritora genial e excêntrica a “escritora
alienada”, indiferente às questões sociais. Desde o Ensino Médio, com a leitura
de Laços de família para o exame do vestibular da Universidade Federal do Ceará
(UFC), estes estereótipos relacionados à Literatura de Clarice Lispector
incomodavam-me e, até mesmo, distanciaram-me de suas narrativas. Naquela
oportunidade, eu pouco acertara a interpretação de questões objetivas sobre os
seus contos, logo na primeira fase do vestibular. Relembrei esta experiência
quando abri o livro A paixão segundo G.H.
e li a advertência “A possíveis leitores”: “Este livro é como um livro
qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já
formada” (LISPECTOR: 1998, p.7). O livro me desafiou, aquelas palavras pareciam
estar destinadas para mim.
No intervalo das primeiras
leituras à leitura da instigante advertência de A paixão segundo G.H., aproximadamente cinco anos, a conclusão do
curso de Letras e o início da carreira docente, entre outras significativas
experiências de vida, possibilitaram enxergar e melhor interpretar a “condição
de manco” a quem busca analisar os dramas da existência humana sob o nexo
dinâmico entre a “leitura do mundo” e a “leitura da palavra” (FREIRE: 1989, p.
9). Na Tese A condição humana na poética de Clarice Lispector, estabelecemos a
categoria “experiência”, fundante do processo narrativo, como indispensável
para pensarmos o universo ficcional da escritora, por meio do qual discutimos a
“crise dos fundamentos da vida humana”, resultante das transformações da civilização
Ocidental, no “Breve Século XX” (HOBSBAWN:1995), com as Grandes Guerras. Por
meio de sua obra, no entrecruzamento entre ficção e realidade, consideramos a
escritora Clarice Lispector uma intérprete desse “tempo sombrio” (ARENDT: 2008,
p. 19), visto que soube, por meio de suas máscaras ficcionais, pensar a
condição humana, estabelecendo a ligação entre introspecção e exterioridade,
diante do amálgama de aspectos arcaicos, de desordem, que resistiram na
realidade brasileira, mesmo com o processo de modernização dos centros urbanos.
Sob a Orientação da Professora
Drª Odalice de Castro Silva, esta pesquisa teve início no curso de
Especialização em “Estudos Literários e Culturais”, do qual resultou o trabalho
“A influência bíblica em A paixão segundo
G.H, apropriação e transformação de leituras por Clarice Lispector” (2007),
prosseguindo no Mestrado em Letras, com a Dissertação Uma alegria difícil: A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector
(2009), verificamos a consolidação de um novo estilo de escrita, resultante do
processo de formação literária e cultural da escritora, sobretudo no que
concerne à apropriação e transformação de leituras realizadas por ela, para
análise e interpretação de A paixão segundo G.H. Em A condição humana na
poética de Clarice Lispector, investigamos a relação entre introspecção e
exterioridade, numa análise comparativa entre a poética de Clarice Lispector e
a concepção de “homem comum”, na poética de Franz Kafka, como forma de
interpretação da condição humana na modernidade, na concepção de Hannah Arendt.
No que tange ao entrecruzamento
entre as narrativas histórica e ficcional, que compreendem a trajetória
literária e cultural de Clarice Lispector, analisamos a historicidade e as
múltiplas temporalidades da narrativa clariceana. Essa discussão é acompanhada
tanto por uma parte da relevante fortuna crítica da obra da escritora, quanto
por pensadores e críticos literários, com o intuito de discutir a
indissociabilidade entre linguagem e pensamento e desenvolver reflexão sobre a extensão
da palavra poética da escritora ao domínio filosófico, o que representa um
“desvio criador” em nossa literatura, na concepção de Antonio Candido, haja
vista que, para o crítico, a escritora “estende o domínio da palavra sobre
regiões mais complexas e mais inexprimíveis, capaz de fazer da ficção uma forma
de conhecimento do mundo e das ideais” (CANDIDO: 1970, p.131).
Múltiplas temporalidades estão
inscritas no universo ficcional clariceano, de forma que não há como negar que
a Literatura de Clarice Lispector, após esta trajetória de pesquisa iniciada há
mais de uma década, exerce, para as lentes deste pesquisador, uma “força
condicionante” para uma interpretação da “condição humana”, em face do
descompasso com a realidade histórica em um contexto de profundos abalos no
mundo Ocidental. Assim, na medida em que a pesquisa avança, compreendemos que a
condição de “inacabamento da alma” é o que nos motiva a enfrentar a travessia
dessa “paixão”.
Portanto,
buscamos estabelecer um amplo diálogo, percorrendo narrativas de gêneros
diversificados de sua produção literária, a fim de verificar a construção de
uma obra que se encontra, segundo a concepção de Silviano Santiago, no
“entre-lugar” do discurso latino-americano, uma vez que apresenta uma postura
de descontentamento em relação aos padrões formais exportados pelos europeus,
contestando uma geografia acomodada à cópia e ao silêncio: “Sua geografia deve
ser uma geografia de assimilação e de agressividade, de aprendizagem e de
reação, de falsa obediência” (SANTIAGO: 2000, p. 16).
O
questionamento “O que estamos fazendo?”, considerado o tema central de A
condição humana, no qual Hannah Arendt (2009, p. 13) propõe uma reconsideração
da condição humana à luz das experiências e temores de um mundo pós-Auschwitz, faz-se
pertinente, pois voltaremos a refletir acerca do drama existencial que resulta
da perda de uma “formação humana”, de uma “terceira perna”, enfatizada pela
personagem G.H.. As marcas dessa trajetória, empreendida pela escritora,
encontram momento propício para análise em A cidade sitiada (1949), no terrível
silêncio de Berna, vivenciada pela escritora como um “Cemitério de sensações”
(LISPECTOR, apud GOTLIB: 2008, p.253).
Tese completa em A condição humana na poética de Clarice Lispector
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