quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

“APENAS PARA PESSOAS DE ALMA JÁ FORMADA”?

Síntese de uma pesquisa clariceana
Wesclei Ribeiro Cunha

Muitos são os rótulos vinculados à escritora Clarice Lispector, de escritora genial e excêntrica a “escritora alienada”, indiferente às questões sociais. Desde o Ensino Médio, com a leitura de Laços de família para o exame do vestibular da Universidade Federal do Ceará (UFC), estes estereótipos relacionados à Literatura de Clarice Lispector incomodavam-me e, até mesmo, distanciaram-me de suas narrativas. Naquela oportunidade, eu pouco acertara a interpretação de questões objetivas sobre os seus contos, logo na primeira fase do vestibular. Relembrei esta experiência quando abri o livro A paixão segundo G.H. e li a advertência “A possíveis leitores”: “Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada” (LISPECTOR: 1998, p.7). O livro me desafiou, aquelas palavras pareciam estar destinadas para mim.


No intervalo das primeiras leituras à leitura da instigante advertência de A paixão segundo G.H., aproximadamente cinco anos, a conclusão do curso de Letras e o início da carreira docente, entre outras significativas experiências de vida, possibilitaram enxergar e melhor interpretar a “condição de manco” a quem busca analisar os dramas da existência humana sob o nexo dinâmico entre a “leitura do mundo” e a “leitura da palavra” (FREIRE: 1989, p. 9). Na Tese A condição humana na poética de Clarice Lispector, estabelecemos a categoria “experiência”, fundante do processo narrativo, como indispensável para pensarmos o universo ficcional da escritora, por meio do qual discutimos a “crise dos fundamentos da vida humana”, resultante das transformações da civilização Ocidental, no “Breve Século XX” (HOBSBAWN:1995), com as Grandes Guerras. Por meio de sua obra, no entrecruzamento entre ficção e realidade, consideramos a escritora Clarice Lispector uma intérprete desse “tempo sombrio” (ARENDT: 2008, p. 19), visto que soube, por meio de suas máscaras ficcionais, pensar a condição humana, estabelecendo a ligação entre introspecção e exterioridade, diante do amálgama de aspectos arcaicos, de desordem, que resistiram na realidade brasileira, mesmo com o processo de modernização dos centros urbanos.
Sob a Orientação da Professora Drª Odalice de Castro Silva, esta pesquisa teve início no curso de Especialização em “Estudos Literários e Culturais”, do qual resultou o trabalho “A influência bíblica em A paixão segundo G.H, apropriação e transformação de leituras por Clarice Lispector” (2007), prosseguindo no Mestrado em Letras, com a Dissertação Uma alegria difícil: A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector (2009), verificamos a consolidação de um novo estilo de escrita, resultante do processo de formação literária e cultural da escritora, sobretudo no que concerne à apropriação e transformação de leituras realizadas por ela, para análise e interpretação de A paixão segundo G.H. Em A condição humana na poética de Clarice Lispector, investigamos a relação entre introspecção e exterioridade, numa análise comparativa entre a poética de Clarice Lispector e a concepção de “homem comum”, na poética de Franz Kafka, como forma de interpretação da condição humana na modernidade, na concepção de Hannah Arendt.
No que tange ao entrecruzamento entre as narrativas histórica e ficcional, que compreendem a trajetória literária e cultural de Clarice Lispector, analisamos a historicidade e as múltiplas temporalidades da narrativa clariceana. Essa discussão é acompanhada tanto por uma parte da relevante fortuna crítica da obra da escritora, quanto por pensadores e críticos literários, com o intuito de discutir a indissociabilidade entre linguagem e pensamento e desenvolver reflexão sobre a extensão da palavra poética da escritora ao domínio filosófico, o que representa um “desvio criador” em nossa literatura, na concepção de Antonio Candido, haja vista que, para o crítico, a escritora “estende o domínio da palavra sobre regiões mais complexas e mais inexprimíveis, capaz de fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das ideais” (CANDIDO: 1970, p.131).
Múltiplas temporalidades estão inscritas no universo ficcional clariceano, de forma que não há como negar que a Literatura de Clarice Lispector, após esta trajetória de pesquisa iniciada há mais de uma década, exerce, para as lentes deste pesquisador, uma “força condicionante” para uma interpretação da “condição humana”, em face do descompasso com a realidade histórica em um contexto de profundos abalos no mundo Ocidental. Assim, na medida em que a pesquisa avança, compreendemos que a condição de “inacabamento da alma” é o que nos motiva a enfrentar a travessia dessa “paixão”.
            Portanto, buscamos estabelecer um amplo diálogo, percorrendo narrativas de gêneros diversificados de sua produção literária, a fim de verificar a construção de uma obra que se encontra, segundo a concepção de Silviano Santiago, no “entre-lugar” do discurso latino-americano, uma vez que apresenta uma postura de descontentamento em relação aos padrões formais exportados pelos europeus, contestando uma geografia acomodada à cópia e ao silêncio: “Sua geografia deve ser uma geografia de assimilação e de agressividade, de aprendizagem e de reação, de falsa obediência” (SANTIAGO: 2000, p. 16).
            O questionamento “O que estamos fazendo?”, considerado o tema central de A condição humana, no qual Hannah Arendt (2009, p. 13) propõe uma reconsideração da condição humana à luz das experiências e temores de um mundo pós-Auschwitz, faz-se pertinente, pois voltaremos a refletir acerca do drama existencial que resulta da perda de uma “formação humana”, de uma “terceira perna”, enfatizada pela personagem G.H.. As marcas dessa trajetória, empreendida pela escritora, encontram momento propício para análise em A cidade sitiada (1949), no terrível silêncio de Berna, vivenciada pela escritora como um “Cemitério de sensações” (LISPECTOR, apud GOTLIB: 2008, p.253).

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